O que é Saúde?
"Não é um sinal de saúde estar bem adaptado a uma sociedade doente"
~Jiddu Krishnamurti
O que é saúde? Quando fazemos essa pergunta a alguém, costumamos receber diversas respostas diferentes. Há aqueles que digam que saúde é não sentir dor ou não estar doente, outros dizem que é estar apto a trabalhar ou realizar atividades cotidianas… Mas será que saúde se resume a apenas a questão fisiológica?
Segundo a OMS, “saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas como a ausência de doença ou enfermidade”. Mas o que isso quer dizer? E será que essa definição contempla o significado de saúde?
O conceito de saúde foi se modificando ao longo dos anos com base nas características da sociedade em cada época. Quando pensamos na Grécia, lugar onde tivemos o início do desenvolvimento da medicina segundo uma visão ocidental, podemos perceber que tanto a saúde quanto a medicina em si eram simbolizadas por seres divinos da mitologia grega (o deus da medicina é representado por Asclépio, a deusa da saúde é Higea, e a deusa da cura é Panacea).
No século XVII, o conceito e motivo do adoecer foi desenvolvido através da teoria miasmática, a qual atribuía a origem das doenças aos miasmas; conjunto de odores fétidos provenientes de matéria orgânica em putrefação nos solos e lençóis freáticos contaminados. Entretanto, com o passar dos anos, tal teoria não conseguia mais explicar certos aspectos envolvendo o adoecimento. Com a descoberta da existência de microrganismos pelo cientista francês Pasteur durante o século XIX, surge a teoria unicausal, que pontua a existência de um único agente específico para cada doença existente. Após muitos anos de avanços nas áreas fisiológicas, patológicas, microbiológicas e bioquímicas, a teoria unicausal dá lugar a teoria multicausal, que coloca a doença como consequência de características individuais, comportamentais, fatores de risco, estilo de vida, entre outras coisas que se relacionam. Inicialmente o modelo biopsicossocial foi amplamente utilizado para explicar o conceito “saúde” como sendo o completo bem estar biológico, psicológico e social do indivíduo (esse modelo ainda permanece forte).
Nos anos 70 emerge na América Latina um modelo mais ampliado de saúde que aborda a esfera coletiva como causador e proliferador do adoecimento e da saúde. Portanto, doença e saúde passam a ser vistas como um processo social, regidos por questões estruturais e coletivas, e não como meramente um fator social e descolado do contexto político econômico social em que estamos. Sendo assim, para entendermos os processos de adoecimento, temos que captar como se organiza e se molda a infraestrutura social. Para ficar mais claro, analisemos a nossa sociedade: vivemos no sistema econômico capitalista, que é regido pela exploração do proletariado pela burguesia, detentora da propriedade privada e dos meios de produção e erguida pelas opressões estruturais. Nesse cenário, o processo saúde-doença afeta diferentemente as diferentes classes, sendo que o proletariado é quem está em mais fragilidade quanto ao adoecimento.
Talvez você esteja se perguntando o porquê de esse modelo não ser tão difundido ou aceito na nossa sociedade e a resposta para isso é que, para se reduzirem as causas de adoecimento, teríamos que acabar com a estrutura de classes vigente na sociedade, e isso é inimaginável para aqueles que estão nas esferas mais altas da sociedade. Assim, com a necessidade de desenvolver um modelo que solucione os entraves dos modelos anteriores, mas garantindo a permanência da ordem estrutural da sociedade, surge o modelo de determinantes sociais em saúde. Esse modelo baseia-se em um olhar reducionista e segmentado da nossa realidade, que coloca a estrutura que permeia toda a sociedade como apenas mais um dos fatores de risco para o adoecimento. Dessa forma esse modelo mascara o real problema que é regido pela organização social que estamos imersos e pelo regime de acumulação capitalista.
Portanto, quando falamos de saúde, não podemos desconectá-la da estrutura que a cerca e faz com que ela seja como é. Não há como comparar o risco de adoecimento e desvantagens em saúde de um indivíduo desempregado que pertence a uma região periférica e sem saneamento básico com outro indivíduo que vive em uma região nobre e possui emprego bem remunerado, por exemplo. Isso ocorre porque a estrutura social é capaz de condicionar o risco de exposição, a suscetibilidade, o curso e o resultado da doença nas suas manifestações infecciosa, genética, metabólica, maligna ou degenerativa. Diversas pesquisas sociológicas e epidemiológicas demonstram que as desigualdades socioeconômicas de saúde são persistentes e grandes mesmo com a velocidade e quantidade de progressos que fizemos na área da saúde. Esses estudos confirmam que quanto pior é a posição social do indivíduo, maior é seu risco em saúde - pessoas de estratos socioeconômico inferiores costumam ter desvantagens em fatores de risco biomédicos, ambientais, comportamentais e psicossociais que medeiam a relação entre as condições sociais e a doença.
Por fim, podemos inferir que saúde vai além do indivíduo se sentir bem física, social e mentalmente. Ela é um produto que é constantemente modificada pela sociedade e pela sua estrutura. Não podemos melhorar as condições de saúde e diminuir os índices de adoecimento se ignorarmos o cenário em que essas condições estão inseridas.
Quem tem acesso à saúde no Brasil?
O Brasil possui um dos maiores sistemas de saúde do mundo, o SUS (Sistema Único de Saúde) e é a partir desse sistema que o acesso à saúde no Brasil é assegurado para toda a população presente no território nacional (princípio da universalidade). O SUS atende aproximadamente 80% da população brasileira. Mas, se pensarmos somente sobre porcentagens de acesso, iremos mascarar grandes problemáticas que vivemos quanto à saúde.
O uso dos serviços de saúde é resultado de uma interação entre diversos fatores, como a disponibilidade dos serviços em cada região, por exemplo. Muitos elementos associam-se a essa disponibilidade de serviços, sendo que a acessibilidade geográfica e os fatores socioculturais e econômicos, por exemplo, tem grande destaque na demanda direcionada aos serviços de saúde
A utilização de serviços de saúde é pautada na necessidade percebida pelo usuário, resultante de sua situação de saúde e do seu conhecimento prévio de doença ou condição, o que sofre influência sociodemográfica. Esse acesso retrata as desigualdades e vulnerabilidades da sociedade que são produtos da estrutura social.
Para compreendermos melhor como as desigualdades e o acesso estão intimamente conectadas, vamos analisar como é o acesso à saúde da população negra:
Grande parte da população negra ocupa posições menos qualificadas e de menor remuneração salarial; reside em regiões com ausência/baixa infraestrutura básica; sofre maiores restrições no acesso a serviços de saúde e, quando estes estão disponíveis, são de pior qualidade e com menor resolutividade. A população negra brasileira encontra vulnerabilidades epidemiológicas e sociais que resultam, por exemplo, em impasses no acesso aos serviços de saúde. Além da dificuldade de acesso aos serviços de saúde, os negros ainda enfrentam grande estigmatização racial, levando ao comprometimento da vida do indíviduo. Quando analisamos estudos nacionais de saúde que se utilizam da variável raça/cor, eles evidenciam alta ocorrência de adoecimento e morte dessa população e, dentre as explicações apresentadas para esse fato, encontram-se respostas limitadas que se prendem à interpretações baseadas na pobreza (o que configura um discurso racista). Com esse olhar, raça/cor devem ser compre
Os movimentos sociais relacionados à população negra reivindicam uma melhoria e maior acesso ao sistema de saúde há muito tempo. Entretanto, isso não foi suficiente para conseguirmos mecanismos explícitos de superação das barreiras enfrentadas pela população negra no acesso à saúde, que são em sua maioria pautadas no racismo. Segundo estudos na América Latina, um dos maiores obstáculos que dificultam as mulheres de minorias étnicas está a discriminação e a violência dentro dos serviços de saúde. Mais especificamente no Brasil, fatores como nível de instrução e de renda corroboram para as dificuldades de acesso, sendo que as mulheres negras são as que mais estão vulneráveis. Elementos como sexismo, condições econômicas e socioculturais e racismo são os eixos estruturantes que se articulam e afetam a garantia de acesso universal e equitativo à saúde.
Além disso, há considerável dificuldade de adesão aos tratamentos que são resultado de problemas estruturais (baixa quantidade de insumos e equipamentos, número reduzido de profissionais, barreiras geográficas e depreciação dos conhecimentos medicinais tradicionais da cultura de determinada região), dificuldade de acolhimento entre outros fatores. Segundo alguns estudos a dificuldade de adesão de mulheres afrodescendentes e indígenas na América Latina aos serviços de saúde decorre em grande parte da discriminação enraizada nesses mesmos serviços. Soma-se a isso a exposição, assistência de menor qualidade e atrasos maiores do que outras pessoas quando essas mulheres procuram os serviços de saúde
A questão racial é um dos vários fatores que devem ser analisados quando falamos de acesso à saúde. Os números absolutos costumam mascarar as fragilidades da nossa rede de saúde. Por isso, não devemos nos questionar apenas quantas pessoas tem acesso à saúde ou o que é dito na teoria sobre o direito de acesso, devemos nos perguntar se aquela pessoa em situação de vulnerabilidade tem esse recurso disponível próximo a ela, se essa pessoa é atendida da mesma maneira que todos os outros, se ela é respeitada, ouvida e acolhida. Afinal, não é apenas ter o recurso, é ter o recurso de qualidade e livre de julgamentos e preconceitos.
TEXTOS BASE:
https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69092011000100002
https://www.denem.org.br/2019/04/10/sobre-saude-e-sociedade-mas-afinal-o-que-e-saude/
https://www.scielo.br/pdf/rsp/v51s1/pt_0034-8910-rsp-S1518-87872017051000074.pdf