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Alimentação como instrumento de poder

"Cada dia a natureza produz o suficiente para nossa carência. Se cada um tomasse o que lhe fosse necessário, não havia pobreza no mundo e ninguém morreria de fome" 

~​Mahatma Gandhi 

O padrão alimentar e nutricional de uma população está condicionado a diversos fatores causais, os quais incluem fatores políticos, históricos, econômicos, sociais e etc. O perfil nutricional da população brasileira ao longo dos anos passou de casos de extrema desnutrição para situações de alta prevalência de obesidade. Quanto ao perfil alimentar da nossa população, ele é composto, de uma forma geral, por uma combinação de uma dieta tradicional, cujos elementos principais são o arroz e o feijão (os quais estão sendo gradualmente abandonados pela população), acompanhada por proteínas de origem animal.
Apesar do ligeiro aumento do consumo de frutas e hortaliças, a quantidade desses alimentos ainda está muito aquém do ideal para uma alimentação equilibrada e saudável. Além disso, nas últimas décadas houve um crescimento considerável da inserção de alimentos ricos em açúcares (refrigerantes, sucos industrializados, etc) e gorduras (produtos industrializados) nas prateleiras dos supermercados. Esses alimentos são encontrados por preços mais acessíveis para a população e possuem propagandas constantes dentro dos veículos midiáticos, fazendo com que um expressivo número da população brasileira (principalmente aqueles com menor poder aquisitivo) acabe optando pelo seu consumo.
A produção, distribuição, controle e consumo alimentar possuem íntima relação com as necessidades do modo de vida urbano, o qual é condicionado e ao mesmo tempo condiciona a determinação social dos problemas nutricionais. A rede alimentar atual está pautada na produtividade, na rapidez, na tecnologia e na economia, o que, consequentemente, leva à maior produção de produtos processados. Nesse contexto de valorização da modernidade e de substituição do antigo pelo contemporâneo, o consumo de alimentos industrializados e ultraprocessados é visto e divulgado pela indústria sob um olhar estritamente positivo, na medida em que permite ao indivíduo se adequar ao estilo de vida acelerado e pautado na busca pela produtividade extrema. 

O distanciamento do indivíduo em relação àquilo de que se alimenta, o vício do paladar ao excesso de sal, temperos sintéticos e açúcar e a redução da liberdade e da consciência sobre os processos produtivos atuam como fatores centrais de propagação da cultura alimentar dentro da lógica capitalista. Nela, tem-se a preparação do trabalhador, desde sua infância, para que ele sirva como grande perpetuador de uma dinâmica em que a liberdade de escolha do produto alimentar é amplamente reduzida, tanto no que se refere à escolha do sabor, marca e tipo de alimento consumido, quanto em relação à escolha do que é saudável ou não para o funcionamento de seu organismo.


Como foi dito anteriormente, o Brasil deixou de ter como um de seus principais problemas a fome e passou a ter o sobrepeso e a obesidade como novos desafios. Para que houvesse essas mudanças, algumas iniciativas do Estado tiveram importante papel para a diminuição da insegurança alimentar e pobreza, como a implementação do programa Fome Zero (contribuindo para a diminuição da desnutrição e fome), programas como o Bolsa Família (contribuiu diretamente para a melhora da segurança alimentar, visto que grande parte dos recursos foram gastos com alimentos), Benefício da Prestação Continuada, aposentadorias rurais e políticas de valorização do salário mínimo.

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Nessa perspectiva, a renda é o principal fator para a insegurança alimentar, famílias com um menor poder aquisitivo tendem a ter um padrão alimentar menos nutritivo e com a prevalência de ultraprocessados e açúcares, quando comparado com famílias com rendas mais elevadas. Além disso, a presença de eletricidade, saneamento básico, e região geográfica dos domicílios (domicílios nas regiões do Sudeste, Sul e Centro-Oeste possuem menores estimativas de insegurança alimentar grave frente às regiões Norte e Nordeste) são fatores que contribuem para a escolha alimentar dos brasileiros. Vale considerar que, dependendo da região avaliada, os padrões nutricionais tendem a ter variações relacionadas a questões culturais e a relação domicílios rurais/domicílios urbanos, por exemplo, as regiões Norte e Nordeste, tendem a comer mais produtos como arroz, farinha de mandioca, margarina, feijão e leite em pó, já a região Sul possui grande consumo de carne suína.
Segundo dados do PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) de 2004, negros e pardos tem maior probabilidade de consumir açúcar, arroz, carne bovina de segunda e farinha de mandioca. Além disso, há probabilidade que beira a zero para o consumo de banana, batata, tomate, queijos, leite líquido e carne bovina de primeira. Os resultados têm relação íntima com a faixa monetária à qual esses produtos são destinados. Portanto, quem tem maiores probabilidades de adquirir esses tipos de produtos em maiores quantidades são ricos e brancos. 

Outro fator importante para se pensar quando falamos em padrão alimentar é o grau de escolaridade da população brasileira. A adição de um ano de escolaridade reduz 8% da insegurança alimentar grave. A combinação entre nível de escolaridade e renda são fatores decisivos para o aumento da procura por alimentos orgânicos e mais saudáveis.


 

Segurança alimentar está relacionada com a disponibilidade de alimentos (acesso físico), acessibilidade alimentar (fator econômico), utilização de alimentos (absorção e metabolização dos nutrientes) e vulnerabilidade.
O modelo estrutural da sociedade capitalista, o qual é voltado prioritariamente para atender o mercado financeiro e em que a produção é direcionada para servir às demandas globalizadas, impacta diretamente na disponibilidade de alimentos em regiões mais pobres, menos industrializadas e que não são focos econômicos. Apesar do Brasil ter extrema diversidade de biomas, povos e culturas, nossa alimentação costuma ser composta por basicamente 10 produtos, mostrando uma padronização dos hábitos alimentares. Essa padronização é, em grande parte, gerada pelo sistema alimentar nacional (plantio, colheita, transporte, venda e consumo), o qual condiciona a distribuição e o acesso aos alimentos. 

Nesse sentido, precisamos direcionar nosso olhar aos supermercados, que são os grandes vendedores/distribuidores de alimentos. A alta concentração do varejo alimentar (destaque para: Carrefour, Pão de Açúcar e Walmart, os quais possuem, juntos, cerca de 41% do mercado), leva a uma concorrência desleal para pequenos produtores e comerciantes de alimentos. Essas empresas são responsáveis pelo que será distribuído/consumido em determinada região e por cada classe econômica.
Um projeto de O Joio e O Trigo, aponta para como, dentro da cidade de São Paulo, há escassez e abundância no acesso à alimentação. Segundo a pesquisa, existem locais, dentro da cidade de São Paulo, em que a disponibilidade, divulgação e venda de alimentos não saudáveis, ricos em açúcar, ultraprocessados e pobres em nutrientes, são incentivadas constantemente. Enquanto os produtos saudáveis e orgânicos, sequer são disponibilizados para compra.
Os dados mostram que a distribuição de acesso e variedade de alimentos se concentram em bairros com maior IDH (índice de desenvolvimento humano), enquanto a menor disponibilidade de variedades e distribuição alimentar são predominantes em bairros mais afastados e com menor IDH. A disparidade entre distribuição alimentar ocorre, em grande parte, devido ao descaso e desinteresse do poder público em se responsabilizar pela disponibilização de feiras, sacolões e mercados, transformando o alimento em apenas uma mercadoria. A maior oferta e distribuição de alimentos ocorrem em grandes centros urbanos porque são focos econômicos e isso atrai a iniciativa privada.

A renda tem significativo impacto sobre a segurança familiar, famílias de baixa renda tendem a ter baixo consumo de frutas e hortaliças e uma dieta alimentar, de modo geral, de baixa qualidade. Isso ocorre pela inviabilidade das famílias de baixa renda conseguirem comprar alimentos saudáveis, os quais costumam ter elevado valor econômico. Além disso, enquanto as famílias mais pobres gastam 26% (gasto com alimentos para cada membro da família/mês: R$ 120) do seu orçamento familiar para a alimentação, as famílias mais ricas gastam apenas 5% (gasto com alimentos para cada membro da família/mês: R$ 671).

O que é segurança alimentar? 

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No Brasil, cerca de 70% das causas de óbito da população adulta são ocasionadas por DCNT. Essa alta porcentagem é resultante do processo de transição epidemiológica e nutricional (aumento de alimentos de alto valor energético, porém pobre valor nutricional). Tais modificações promoveram um aumento significativo no sobrepeso e na obesidade, que são grandes fatores de risco para as DCNT

Segundo os dados disponibilizados pelo Ministério da Saúde em 2020, de um total de quase 12.800.000 adultos acompanhados na APS (Atenção Primária à Saúde), cerca de 63% apresentaram excesso de peso e 28% se encontravam em um quadro de obesidade, em 2019. Sendo que, esse perfil de distribuía de forma quase homogênea entre homens e mulheres. Esse perfil aumenta a chance de doenças como diabetes melittus, as doenças cardiovasculares, alguns tipos de cânceres e a obesidade. A obesidade (excesso de peso e acúmulo de gordura na região abdominal) aumenta diretamente o risco do desenvolvimento de hipertensão arterial, hiperlipidemia, doenças coronarianas e diabetes mellitus tipo 2.
O consumo de ultraprocessados (aqueles que possuem o maior nível de processamento industrial, costumam ter alta adição de açúcares, gorduras, substâncias sintetizadas em laboratório e, principalmente, conservantes) também é um fator que aumenta o risco para o desenvolvimento de doenças crônicas e cardiovasculares.

Um estudo da Universidade de Paris acompanhou uma população de aproximadamente 150 mil adultos, durante cinco anos e os resultados mostram que “aqueles que consumiram mais alimentos ultraprocessados tiveram mais problemas cardíacos. Isso é, o acréscimo de 10% de alimentos ultraprocessados na dieta aumentava em 12% o risco relativo de doenças cardiovasculares, coronárias e cerebrovasculares”. A Universidade de Navarra também realizou um estudo mostrando que, em um conjunto de cerca de 20 mil pessoas, acompanhadas por décadas, aqueles que consumiam mais de quatro porções de ultraprocessados ao dia tiveram um aumento de 62% no risco de morrer por qualquer motivo, em comparação à ingestão de duas porções diárias. "Para cada porção extra, o risco de morte sobe em 18%”.
 

Padrão de Consumo Alimentar e Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT) 


O aumento da distribuição e consumo de ultraprocessados está intrinsecamente relacionado à políticas econômicas que favorecem a entrada de empresas transnacionais no mercado interno, ao fluxo do capital internacional e à desregulamentação do mercado. Com a desregulamentação do mercado, há um expressivo aumento da venda de produtos ultraprocessados. 

No Brasil, o consumo de alimentos e bebidas ultraprocessados em 2020 foi de 86 kg per capita, em 2013 esse valor aumentou para 112,3 kg per capita e apresenta um crescimento de 2,1% ao ano. Esses alimentos são comercializados por grupos econômicos que detêm o monopólio do mercado. O aumento do consumo desses alimentos foi fortemente influenciado pelas campanhas de marketing, a elevação do poder de compra, a comodidade/conveniência e seu menor custo.
O McDonald 's, por exemplo, tem a gordura trans como um dos ingredientes em seus alimentos e ainda utiliza, como estratégia de marketing destinada para crianças, a venda de brinquedos vinculados a alimentos não saudáveis. O CCF (Center for Consumer Freedom), que deveria ser um canal direto entre indústria e consumidor, é financiado por empresas como Coca-Cola, Cargill, Tyson Foods e Wendy. Muitos eventos para o lazer e realização de atividades físicas são patrocinados pelas grandes empresas de ultraprocessados, como uma forma de enganar o consumidor quanto à qualidade nutricional dos produtos disponibilizados por elas.

Os veículos midiáticos corroboram ainda mais a insegurança alimentar, principalmente em populações mais vulneráveis. As estratégias de venda, através da propaganda, adotam técnicas que se utilizam até de análises comportamentais psicanalíticas. Com isso, a propaganda acaba se valendo dos desejos, ilusões e crenças do público geral, induzindo a perda do autocontrole da população. O Estado deveria regular e promover padrões alimentares e nutritivos seguros, assegurando que não haja a comercialização de produtos alimentícios que tenham como público alvo crianças e pré-adolescentes e regulamentando a propaganda e divulgação de alimentos. Porém, no Brasil, apesar de haver o Código de Defesa do Consumidor e resoluções do Conselho Nacional dos Direitos da Criança, que estabelecem medidas protetivas para as propagandas abusivas, ainda assim enfrentamos a falta de regulamentação para a propagandas de alimentos (exceção: propagandas que busquem substituir o leite materno). Com isso, a população brasileira se encontra em uma ilha cercada por grandes indústrias que monopolizam o que será consumido e quanto será pago por determinado produto, além de não precisarem conviver com a fragilidade (que beira a ausência) de medidas que promovam a segurança alimentar.

 

A indústria alimentar

Alta no preço dos alimentos 

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Segundo o IBGE, desde o início da pandemia o preço dos alimentos aumentou 15%. Esse valor chega a ser quase o triplo da inflação geral (5,20%). A inflação no preço dos alimentos afetou diretamente na cesta básica (óleo de soja (87,89%), arroz (69,80%), batata (47,84%) e leite longa vida (20,52%), cereais, leguminosas e oleaginosas (57,83%), óleos e gorduras (55,98%), tubérculos, raízes e legumes (31,62%), carnes (29,51%) e frutas 27,09%), fazendo com que a população mais pobre tenha que abrir mão do consumo de diversos alimentos que faziam parte da sua alimentação diária e passe a adquirir alimentos mais baratos e consequentemente menos saudáveis.

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