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Feminismo

“Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela.”

~​Angela Davis 

As diferentes vertentes feministas se desenvolveram sob a influência dos respectivos processos históricos e sociais em que estavam incluídas. Por esse motivo, embora exista uma ideia comum de melhoria das condições de vida das mulheres, cada vertente feminista apresenta um entendimento próprio sobre as opressões vividas por elas, sobre quem são as pessoas oprimidas e sobre como tais opressões devem ser combatidas. Não é de se estranhar, portanto, que tais vertentes discordem fortemente uma das outras. Uma dessas divergências está relacionada à presença dos homens nesses grupos e em suas lutas. Como as principais vertentes feministas entendem o apoio masculino às suas causas? A presença dos homens é bem-vinda em quais associações de mulheres?

Feminismo Liberal

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Associado à primeira onda feminista (séculos XVIII e XIX), o feminismo liberal se ancora nos ideais de igualdade jurídica característicos do liberalismo, a partir dos quais essas mulheres feministas passaram a lutar pelos direitos ao voto, ao trabalho e à ocupação dos espaços públicos, ou seja, elas começaram a exigir terem os mesmos direitos civis em relação aos homens. Apesar de muito criticadas, naquela época, por grupos conservadores, receberam apoio de alguns homens, como John Stuart Mill (ele era até mesmo casado com uma das feministas liberais mais influentes da época, a Harriet Taylor Mill), na Inglaterra, e Frederick Douglass (o qual, inclusive, era um importante líder abolicionista), nos EUA. Para as feministas liberais, esse apoio masculino foi muito bem-vindo: os homens eram os formuladores e os garantidores da lei e, portanto, as alterações legais que, segundo elas, permitiriam a equiparação jurídica entre homens e mulheres necessariamente seriam feitas pelos homens conscientizados pelo movimento.
O feminismo liberal, ao se basear na perspectiva liberal formulada por homens que majoritariamente estruturavam o patriarcado e a exploração de minorias étnicas e das classes mais pobres, foi fundamentalmente individualista: protagonizado por mulheres brancas e burguesas, ignorava diversas formas de violência pelas quais passavam outras mulheres (como a opressão de classe e o racismo).

Muitas vezes, tais mulheres brancas até mesmo se tornaram instrumentos de opressão contra outras mulheres. Por exemplo, após a Guerra de Secessão, nos EUA, líderes sufragistas, como Susan B. Anthony passaram a adotar discursos racistas e eugenistas nas Convenções cujo objetivo era lutar pelo voto feminino. Ademais, quando o encontro dessas Associações Sufragistas foi estabelecido em estados do Sul dos EUA, marcadamente racista, essa mesma líder impediu a presença de apoiadores negros (inclusive do Frederick Douglass, já anteriormente citado), pois, segundo ela, tal atitude seria necessária para angariar apoio de homens e de mulheres sulistas.

Dessa forma, embora as feministas liberais se organizassem em prol de uma causa legítima (a equiparação de direitos entre homens e mulheres), também se estabeleciam como um instrumento de opressão contra outras mulheres (como as afrodescendentes); ou seja, o feminismo liberal não teve como propósito o fim da opressão sofridas por todas as mulheres, mas sim a garantia de direitos às mulheres brancas e burguesas. Tal fenômeno não poderia ser diferente, visto que o feminismo liberal foi fundamentado na ideologia liberal, a qual é profundamente individualista, e em grande medida, justificadora das desigualdades sociais e étnicas.

Devido às mudanças ocorridas no século XX (Grande Guerra, crise de 29, voto feminino, etc), o feminismo liberal foi desarticulado e desmobilizado, reduzindo sua força em diversos países. Dentro desse processo de contrastes, o Feminismo se remodelou resultando em uma outra fase, na qual nasceu o feminismo radical.
A segunda onda do feminismo traz novas reflexões quanto às desigualdades sexuais, formas de opressão feminina e patriarcado. O objetivo revolucionário do feminismo radical se concentra na mulher e em suas experiências e interesses. Apesar de haver diversas correntes dentro do feminismo radical, a maioria delas compartilham certos princípios gerais:
As mulheres são oprimidas por homens, sendo essa opressão primária para as mulheres e exercida mediante a estrutura patriarcal. O feminismo radical evidencia o controle masculino em todas as esferas da vida das mulheres, sendo os principais focos a reprodução, o casamento, a heterossexualidade compulsória e a maternidade.

Feminismo Radical

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O feminismo radical é feito por e para mulheres, sendo necessário uma revolução estrutural social e a eliminação do patriarcado. Mary Daly, feminista radical e autora do livro “Gyn/ecology” coloca que o feminismo radical deve atuar como instrumento de mudança de consciência. Segundo ela, “O Feminismo Radical não é reconciliação com o pai; na verdade, é afirmar nosso nascimento original, nossa fonte original, movimento, impulso de viver. Esta descoberta da nossa integridade original é relembrar nossos Eus” (Gyn/ecology).


Para Ti-Grace Atkinson, as mulheres, enquanto grupo, podem ser comparadas com uma classe social oprimida, e o “sistema homem/mulher” é a primeira e mais fundamental instância de opressão humana”, bem como “todos os outros sistemas de classe são construídos em cima dele”

O feminismo radical aponta que as mulheres são, como classe social, oprimidas por homens, assim como individualmente, os homens se beneficiam dessa opressão e não buscam por mudanças. Portanto, como o que determina a relação entre homens e mulheres é o poder, as mulheres devem se responsabilizar coletivamente pela luta contra essa opressão.
O patriarcado, dentro dessa vertente, é visto como sistema histórico de dominação masculina, regido pela manutenção e pela ampliação da hegemonia masculina, através das estruturas (família, religião e lei), em todas as esferas da vida. Ele possui uma base material, uma vez que os sistemas econômicos são estruturados de forma a inviabilizar que a mulher tenha trabalho remunerado, tornando praticamente impossível que as mulheres sem um emprego consigam se manter sem a família. Além disso, o corpo feminino é tratado como uma moeda: no casamento, a mulher se torna “propriedade” de seu marido; na pornografia/publicidades o corpo da mulher é objetificado e torna-se “propriedade” de outros.

Ao analisarmos questões reprodutivas, percebemos que os homens as controlam através da dominação de indústrias farmacêuticas e dos órgãos políticos. Portanto, de maneira geral, a autoridade masculina é sustentada e sedimentada pelas instituições sociais, pela ideologia, pela força/coerção, pelo controle de recursos financeiros, pelas relações de intimidade entre o homem e a mulher e pelo próprio poder pessoal da autoridade masculina. Vale ressaltar que o patriarcado inclui, além da dominação masculina, o imperialismo heterossexual, o sexismo, a supremacia branca e o capitalismo.
Quanto aos aspectos de saúde da mulher, o feminismo radical aponta que a medicina é controlada por homens, e, por isso, visa controlar socialmente as mulheres, em detrimento de cuidar da saúde delas. Nesse contexto, as feminista radicais lutam pelos métodos contraceptivos seguros e gratuitos e pelo direito ao aborto.
Os corpos femininos e a maneira pela qual eles são utilizados como forma de opressão são aspectos bastante pesquisados por escritoras/pesquisadoras feministas, as quais dão grande destaque para violência sexual contra a mulher. Kathleen Berry argumenta que a prostituição não é somente uma exploração econômica da mulher, mas também uma forma de opressão, visto ser ela uma prática de escravidão sexual institucionalizada, bem como o resultado da falta de oportunidades financeiras para as mulheres. Barry aponta que a opressão masculina ocorre porque nada impede que eles a façam: “Para manter sua posição de mais poder e então se alimentar em sua necessidade de mulheres sem serem consumidos por isso, os homens, enquanto grupo dominante, institucionalizam sua posição de poder. Isso envolve a necessidade de estruturar instituições que mantenham esse poder, o desenvolvimento de uma ideologia para justificá-la, e o uso da força e da violência para a impor quando a resistência emerge” (Rowland).

Sendo assim, o feminismo radical critica a obrigação, impostas às mulheres, de serem estas as responsáveis por fazerem os homens se sentirem bem (seja realizando tarefas domésticas, seja sendo mãe/esposa, seja desempenhando um papel de submissão) e, nesse contexto, é um ato de resistência se recusar a realizar esse tipo trabalho e a desempenhar tal papel.

O feminismo marxista se desenvolveu no interior dos movimentos de esquerda a partir da consciência, adquirida pelas suas participantes mulheres, da necessidade de se questionar e de se abordar a relação entre as opressões vividas por elas e a configuração capitalista atualmente estabelecida. Com base nessa percepção, defende-se a ideia de que as mulheres sofrem o capitalismo de uma maneira muito singular em relação aos homens: elas são exploradas de uma forma mais intensa ao serem consideradas trabalhadoras menos qualificadas (e, por esse motivo, ganham salários menores), ao serem as grandes responsáveis pelos serviços domésticos (a elas são impostos os trabalhos não remunerados, que envolvem o cuidado com a família) e ao serem consideradas seres inferiores cujo papel é a subordinação ao homem.
Silvia federici - importante autora feminista marxista -, em entrevista ao grupo de comunicação “El País”, alerta para o fato de que o assédio sexual não é um fenômeno acidental que ocorre com as mulheres, mas, na verdade, trata-se de uma situação “estrutural na relação entre homens e mulheres na sociedade capitalista”. Segundo ela, não é só na prostituição que as mulheres vendem seus corpos, mas também nas demais profissões: por exemplo, deparou-se, por meio de conversas com garçonetes nos EUA, com o fato de que estas expõem mais seus corpos aos clientes no final do mês, quando precisam pagar o aluguel, pois assim recebem mais gorjetas.
Apesar das feministas marxistas, como Silvia Federici, compreenderem que os homens têm um papel fundamental no estabelecimento das opressões contra as mulheres, elas também consideram que o patriarcado não se configura isoladamente como opressor: ele oprime em consonância com o capitalismo, utilizando-se inclusive de instrumentos deste para tornar a opressão ainda mais violenta e brutal. Portanto, apesar de os homens frequentemente serem instrumentos de opressão contra as mulheres, a luta contra tal tirania não deve ser apenas feminina, visto que o capitalismo se configura como um sistema de opressão universal contra toda a classe trabalhadora, independentemente de gênero (apesar de influenciado pelo gênero).

Nesse sentido, os homens contribuem com as mulheres ao lutarem contra o capitalismo; entretanto, tal luta é insuficiente quando não se pretende também destruir o patriarcado. Essa é uma reflexão que se fortalece na construção do conceito de interseccionalidade, metodologia presente no interior do feminismo marxista, cuja mais conhecida representante é a ativista e escritora Angela Davis. Essa metodologia aponta a necessidade de articulação das experiências identitárias para o estabelecimento de uma luta conjunta e de sucesso contra todas as formas de opressão.
A interseccionalidade foi primeiramente pensada por feministas negras que não tiveram suas reinvidicações contempladas tanto no feminismo branco quanto no movimento antirracista. Segundo essa perspectiva, as opressões existentes não são apenas de classe, mas são também de cor e de gênero. Assim, as mulheres negras sofrem uma forma muito singular de opressão, visto que profundamente afetadas pela exploração da sua mão de obra nos trabalhos mais desvalorizados. Exemplo dessa exploração é o trabalho como empregada doméstica, cuja configuração laboral é profundamente afetada pela questão étnica (segundo pesquisa do Ipea de 2019, 18,6% das mulheres negras são empregadas domésticas, porcentagem muito superior ao de mulheres brancas), pela questão de gênero (trabalhadoras domésticas são conhecidamente vulneráveis a sofrerem assédio sexual perpetrado pelos próprios empregadores) e pela questão de classe (trata-se de um serviço muito mal remunerado).
Sendo assim, conforme aponta Angela Davis, para compreender e lutar contra a desigualdade e contra a opressão, deve-se desenvolver uma análise interseccional das violências contra os grupos oprimidos. Tal análise não envolve apenas debater sobre as opressões vividas pelas mulheres (como fizeram as feministas liberais e as feministas radicais), mas também compreender como o capitalismo e o racismo perpetuam violências contra diversas pessoas (inclusive contra os homens) e, mais fortemente, contra a mulher negra.

A Interseccionalidade representa simultaneamente pensar de forma sensível a identidade e sua relação com o poder, não sendo exclusivamente direcionado a mulheres negras, até porque todas as mulheres (negras, não-negras, trans, travestis, queers etc) devem pensar suas experiências identitárias de forma articulada. Esse conceito foi pensado por feministas negras que não tiveram suas reinvidicações contempladas tanto no feminismo branco quanto no movimento antirracista.
Com isso, a interseccionalidade tem como objetivo fornecer base teórica e metodológica para explicar a inseparabilidade presente na estrutura do racismo, capitalismo e do patriarcado, que fazem com que a mulher negra sofra tanto em relação ao gênero, raça e classe. Para Kimberlé Crenshaw¹, é a partir da interseccionalidade que podemos entender a interação e correlação entre as estruturas e a incapacidade do feminismo em atender as mulheres negras, assim como as problemáticas presentes no movimento negro, de caráter predominantemente machista

Ao analisarmos a história da escravidão, vemos que as mulheres além de serem escravizadas sofriam pela sua condição de mulher, sendo vítimas de violências sexuais e opressões de gênero. O estupro era um dos principais mecanismos de humilhação e submissão que os homens brancos usavam sempre que desejavam. Com a luta contra a escravidão e, porteriormente pelo sufrágio, as mulheres negras e brancas foram preparadas para a militância em busca da defesa de seus direitos. Entretanto, o enfoque exclusivo do movimento sufragista nas mulheres impediu que elas entendessem as peculiaridades situacionais enfrentadas por mulheres negras.
Apesar do movimento sufragista ter se originado da luta antiescravagista, ele passou a adquirir uma postura racista e chegou a defender a supremacia branca (um exemplo foi o apoio a campanha contra o voto dos homens negros). As líderes do movimento sufragista eram, em sua maioria, mulheres brancas de classe média alta, as quais apontavam como fatores limitantes para a vida das mulheres a falta de oportunidades de empregos, estudos e a domesticidade/matrimônio (pautas exclusivas de mulheres brancas de classe média). Elas acreditavam que com o poder do voto poderiam ter igualdade de direitos em relação aos homens. Entretanto, apesar dessas pautas serem importantes, acabavam por não abarcar mulheres trabalhadoras de classe baixa e negras. Como coloca Davis em Gênero, Raça e Classe “(...) não eram os direitos das mulheres ou igualdade política das mulheres que tinham de ser preservados a qualquer custo, e sim a superioridade racial reinante da população branca”.

Após a abolição da escravidão, a população negra não foi inserida na socidade de maneira qualitativa. Para as mulheres negras praticamente não houve mudanças, elas continuaram em trabalhos predominantemente domésticos (as poucas que trabalhavam na indústria ocupavam cargos subalternos e mal remunerados) com carga horária absurda, violência, assédios/abusos, salários ínfimos etc. Esse padrão perdurou ao longo dos anos e se moldou de acordo com a conjuntura, sendo que contemporaneamente, embora mascarado, ainda temos a presença dele.
Tendo isso em mente, a interseccionalidade mostra mulheres que estão à margem da cisgeneridade branca hétero patriarcal. Mulheres de cor, lésbicas, “terceiromundistas”, excluídas de sua identidade e subjetividade. Essa articulação metodológica busca a conexão das separações identitárias, para que assim seja defendida a identidade política contra a matriz de opressão colonialista, a qual ainda sobrevive devido ao racismo cisheteropatriarcal capitalista.
Portanto, a interseccionalidade é sobre a identidade da qual participa o racismo conectado por outras estruturas. Diz respeito a experiência através da raça, que requer que abandonemos uma visão particular que impõem obstáculos às lutas de modo global e que vão servir às diretrizes heterogêneas do Ocidente, resultando ao isolamento político da mulher negra, uma vez que são marcadas pela sobreposição dinâmica identitária. É necessário que utilizemos de modo analítico todos os sentidos para compreendermos as mulheres negras na diversidade de gênero, sexualidade, classe, marcações subjetivas e geografias materializadas dos corpos.

Feminismo Marxista

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