Comer é um ato político
Segundo uma pesquisa realizada pelo Instituto Data Favela, conjuntamente à CUFA (Central Única das Favelas) e à Locomotiva Pesquisa e Estratégia, 68% dos moradores de favelas não possuíam renda suficiente para comprar comida por pelo menos um dia em 2021. A pesquisa envolveu todos os estados do Brasil, contando com dados de 76 favelas, em que foram entrevistadas 2.087 pessoas.
Os dados também mostram que houve uma queda no número de refeições diárias dos moradores das comunidades; em agosto de 2020 a média era de 2,4, e passou a ser 1,9 em fevereiro de 2021. Além disso, 71% das famílias brasileiras sobrevivem com menos da metade da renda que tinham antes da pandemia e 15 milhões não fazem três refeições diárias.
Se formos analisar os dados do IBGE de 2020, temos que 39 milhões de pessoas vivem em condições de miséria, 14 milhões em situação de extrema pobreza e 14 milhões estão desempregados.
A FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura) pontua que a produção de alimentos no mundo é mais do que suficiente para alimentar todas as pessoas do mundo (são produzidas, em média, mais de 2 mil kcal por pessoa, que é um valor mínimo de energia que um indivíduo necessita). Entretanto, apesar de termos tanta abundância, mais de 780 milhões de pessoas vivem em situação de fome crônica no mundo, e grande parte delas está em áreas rurais sobrevivendo precariamente de agricultura de subsistência.
Segundo a ONU (Organização das Nações Unidas), parte do problema pode ser explicado pelo desperdício de alimentos. Segundo estimativas, ⅓ de toda a comida produzida no mundo é desperdiçada ou perdida. A FAO aponta que “mesmo que apenas ¼ dos alimentos atualmente perdidos ou desperdiçados globalmente pudessem ser salvos, isso seria suficiente para alimentar 870 milhões de pessoas que hoje passam fome no mundo”.
Entretanto, a FAO e a ONU não apontam os fatores sociais envolvidos no desperdício, ignorando as motivações por trás disso, que consistem no lucro, pilar do nosso sistema alimentar, e na concentração em oligopólios que dominam a produção de mercadorias primárias e constroem um sistema de dependência. Os produtores e distribuidores deixam alimentos estragarem ou os jogam fora por um motivo: o acúmulo de capital.
Dentro do sistema capitalista, o alimento que não vira mercadoria não tem serventia, apesar de apresentar valor biológico para indivíduos com fome. Segundo Lisa Johnson, pesquisadora de horticultura da Universidade Estadual da Carolina do Norte, à medida que os preços flutuam durante o período de crescimento, os agricultores começam a colher menos culturas. Os preços de frutas e legumes são maiores no início da temporada do que no final; portanto, com o passar da estação, os produtos vão cada vez mais permanecendo no campo. Os grandes agricultores reduzem a quantidade de produtos disponíveis para o abastecimento para que, assim, consigam aumentar os preços, levando a uma ilusão de baixa oferta, sem que a demanda seja levada em consideração. Segundo Philip H. Howard em “Concentração e poder no sistema alimentar: quem controla o que nós comemos?”, “A demanda por produtos agrícolas é inelástica; produzir mais tem o objetivo de reduzir os preços”. Além disso Philip aponta como o consumo é projetado por diferentes empresas; assim, elas remodelam as práticas socioculturais para aumentar as compras, nos modificando do auto-abastecimento para “consumidores” (ex: em vez de ferver a água para a farinha de aveia, os consumidores podem comprar versões para microondas).
Vale ressaltar que, apesar da fragilidade característica da produção agrícola de muitos lugares - devido à má qualidade ou à má gestão do solo e aos climas desfavoráveis para cultivos -, a fome existente em países como o Brasil não é decorrente da falta de alimentos, mas sim da falta de recursos financeiros das famílias, problema que é potencializado pela redução de disponibilidade de alimentos ao mercado em função do interesse no aumento de preços. Conforme aponta pesquisa da Embrapa - Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária -, o Brasil é hoje o segundo maior produtor de grãos do planeta e, em cinco anos, será o maior. Dessa forma, não se pode dizer que faltam alimentos no Brasil, mas sim que falta renda para as famílias comprarem esses alimentos.
Deve-se lembrar do aumento dos preços do arroz, do feijão, do óleo de soja e da carne ocorridos no ano passado, fenômeno que gerou revolta e preocupação na população. Naquela época, esse aumento de preços foi decorrente da valorização do dólar em relação ao real, o que fez os produtores rurais priorizarem a venda de seus produtos para o mercado externo em detrimento da venda para o mercado interno, pois assim lucrariam mais. Desse modo, constata-se que alguns poucos lucraram diminuindo a oferta de alimento do país; ou seja, enriqueceram às custas da fome e da insegurança alimentar impostas à sociedade brasileira.
Naquela mesma época, uma ideia diferente de sociedade foi apresentada em oposição a essa vigente, de priorização do lucro em relação à vida. No mesmo momento em que os preços dos alimentos foram aumentados pelos grandes produtores rurais, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) permaneceu vendendo seus produtos a preços justos, e seus trabalhadores não tiraram proveito do aumento de preços no mercado interno. Esse mesmo movimento - o qual é continuamente criminalizado pelo presidente e por boa parte do Congresso Nacional e da sociedade civil - foi responsável pela doação de 5.000 toneladas de alimentos no período entre o início da pandemia de COVID-19 e o dia 7 de julho de 2021.
Outro fenômeno bastante problemático relacionado à insegurança alimentar é o excesso de importância dada à aparência, à cor, ao formato e ao tamanho de frutas e de vegetais. Nesse contexto de padronização dos alimentos, o consumidor passa a selecionar aquilo que é mais bonito, e não necessariamente o que está próprio para o consumo ou não. Com isso, os agricultores são incentivados a deixarem no campo tudo aquilo que não segue o padrão estabelecido pelo mercado. Vale ressaltar que, de todas as culturas cultivadas, somente 2% são frutas e vegetais. Marion Nestle aponta que “do ponto de vista nutricional, preços altos para o açúcar podem representar um desincentivo ao consumo de refrigerantes, sobremesas e doces, mas, do ponto de vista financeiro, essa política é altamente desejável”.
Sendo assim, as informações apresentadas demonstram que a necessidade de se mudar o mundo é imediata, afinal, pessoas morrem de fome ou sobrevivem de maneira precarizada em decorrência da cobiça e da indiferença de alguns, que estruturam o sistema capitalista. Essa necessidade de mudar o mundo torna primordial observar com atenção o trabalho de grupos como o MST, que para além de pretenderem levar ao prato do brasileiro um alimento de qualidade e sem veneno (sem agrotóxicos), também lutam por uma democracia verdadeiramente popular, pela Reforma Agrária, pela conservação ambiental e pela soberania alimentar. Para resolver o problema da fome, deve-se extinguir o que a sustenta e a mantém.
TEXTOS BASE:
Concentration and Power in the Food System: Who Controls What We Eat? - Philip H Howard
Food Politics: How the Food Industry Influences Nutrition and Health - Marion Nestle
https://www.dmtemdebate.com.br/o-capitalismo-gera-fome-em-meio-a-abundancia/